Wednesday, February 22, 2006

ÍMPAR

Certezas são âncoras de um forte querer
razões que me levam a não seguir por aí
a seguir distante de tudo, perto de mim

PODER!

puder não hesitar e partir
enfrentar os trilhos da indiferença
que rotulam os desalinhados e ser

SER!

ser assim e daqui distante
estar aqui sem unanimidade
ser singular para não rimar

QUERER!

querer o impossível e realizar
abraçar o diferente sem medo
na presença entre iguais, ser ímpar

Waldir Araújo

Tuesday, February 21, 2006

"NADA VER"

A melodia saía sofregamente da cansada guitarra. Os longos dedos que dedilham as cordas bambas do instrumento são morenos e exibem grandiosamente as rugas de uma vida ritmicamente tumultuosa. Vivida de escala em escala.
O som que escorregava do ventre da guitarra era familiar e executada com mestria. "N'cria Ser Poeta" . O nosso artista não tinha público e isso parecia pouco importar. O palco era uma pequena sala de um bar, com pouca decoração e uma placa a anunciar fluorescentemente o nome do estabelecimento, "Nada Ver". Poucos minutos passavam das 19 horas quando entrei no estabelecimento. A menina-de olhos-cor-do-mar atendeu-me com aquele sorriso feito meia-lua. Mal fiz o pedido, tropeçou-me com as perguntas habituais, à laia de fazer conversa. Sem sucesso. Apercebeu-se do meu súbito interesse pelo homem que no canto da sala dedilhava as cordas de uma cansada guitarra.
"N'cria ser Poeta". É estranha a minha relação com esta suprema composição de Paulino Vieira. Despe-se-me a alma de cada vez que a escuto. E naquela tarde, a sensação foi a mesma. Viajei de mãos dadas com fragmentos de memórias que são no fundo não mais do que peças de puzzle feito lembraças. Pedaços de momentos, vozes, sorrisos, lágrimas, cumplicidades. Vividas aqui e além. Um pouco por todos os lugares que percorri. E que volta e meia, percorro de novo sem lá estar. Viajava com o olhar fixado na expressiva cara do homem de cabelos grisalhos que tocava alheio a tudo. Apercebeu-se do meu interesse. Como se de propósito, pareceia não querer pôr fim a interpretação. Estavamos apenas os três. O homem-de-cabelos-grisalhos-e-dedos-enrugados, a menina-de-olhos-cor-do-mar e eu. E a melodia que nos consomia. Os olhos da menina ganharam mais cor e pareciam agora um mar em calmaria. O mar das tristes mornas e coladeras. O mar dos que partem e dos que ficam à espera. Eternamente à espera. Mas ficam. Como as notas de uma pauta esquecidas num tripé. Ficam por uma razão qualquer. Uma forte razão qualquer. A menina-de-olhos-cor-do-mar também viajava ao som da guitarra do homem-de-cabelos-grisalhos-e-dedos-enrugados. Fixei-a. Por momentos quis ler os seus pensamentos. Conhecer os pedaços de memórias feito peças de puzzle que volta e meia, accionados por um sentido - um cheiro, uma melodia, um olhar - assaltam-nos a lembrança. A pose, com a mão direita a amparar o queixo e um olhar marabsorto, perdidamente longe, sugeria lembranças inconfessáveis.
Momentos depois um silêncio interrompeu a nossa viagem. O homem-de-cabelos-grisalhos-e-dedos-enrugados intorrompeu a interpretação e pegou no copo transparente cheio de grogue. Deu um gole súbito e sem piedade. Olhou para mim e tirou o "can-can" do bolso e cheirou longamente. - Quer conversar, confidenciou-me a "menina-de-olhos-cor-do-mar ". -Ele já viu o seu interesse e quer conversar. Aproximei-me e depois de uma desajeitada apresentação, ofereci um copo ao homem-de-cabelos-grisalhos-e-dedos-enrugados . Ele nem precisou nomear a bebida, a menina-de-olhos-cor-do-mar tirou automaticamnentedaestante uma garrafadegrogue CidadeVelha e serviu-o no mesmo copo transparente. O artista apontou-me a cadeira num convite à conversa. Elogiei a interpretação de "N'cria Ser poetra". -Fui eu que ensinei Paulino Vieira a tocar viola, respondeu. Altivo, como se esta frase justificasse a mestria com que brinca com a guitarra cansada. Falamos muito. Ao longo da conversa, ia dedilhando uns acordes de temas conhecidos. Com uma mestria impressionante. Fiquei a saber que vinha de uma família de músicos da Ilha de Brava, Dja Brava. Tinha um pequeno "tchón" para lavrar e ajudava o irmão na pesca. O pequeno negócio do irmão afundou e a terra mais não quis dar. O homem-de-cabelos-grisalhos-e-dedos-enrugados decidiu partir então para Santiago. De encontro à uma vaga promessa de trabalho que ainda hoje aguarda. Lembrou-se então que dos parcos haveres que trouxe, veio a companheira de sempre, a sua velha, cansada, bonita e inseparável guitarra. -Herdei-a do meu pai. É a única coisa de valor que tenho. Hoje, vai vivendo do que chama de "biscates", tocando aqui e ali, em troca de um prato de comida. Ou groque para "aquecer a dor e enganar o estômogo" . Entretido nos fragmentos de uma vida cujos pormenores me eram confidenciados na primeira pessoa, não me apercebi que a sala do bar tinha mais gente. Mais clientes que vinham tomar algo e "não se importavam" de ficar horas a fio a apreciar os dotes do homem-de-cabelos-grisalhos-e-dedos-enrugados que tocava como ninguém uma guitarra velha e cansada, mas donde brotam acordes que enfeitiçam. Dias antes de deixar Santiago, voltei a cruzar-me com o homem-de-cabelos-grisalhos-e-dedos-enrugados. Nunca soube o nome dele. Estava sentado à porta de uma pequena mercearia, na Achada de Santo António, com a velha amiga de madeira, cansada e bonita que brota sons de encantar. Dedilhava dedicamente uma outra melodia. "Mar i Morança di Sôdade", do incontornável B.Leza. Ofereci-lhe um copo. -Não. Desta vez pago eu, quem fica é que paga! Ainda hoje estou por descobrir como que ele sabia que eu partia horas depois.
E com um gesto nobre contou as poucas moedas que tinha no bolso da calça gasta e pediu duas cálices de Aguardente Velha.
"-Nós ficamos, não pergunte porquê, mas ficamos. É destino do homem, Deus assim quer", rematou para matar o silêncio que nos ladeava. Do outro lado da rua a "menina-de-olhos-cor-do-mar" dançava suavemente ao som do batuque tocado por um grupo de mulheres vestidas de branco. Deixei-me perder pela elegância e sedução com que dançava a rapariga cujo nome também não sei. E os seus olhos - hoje um mar de ondas a morrer nos rochedos- fixou-me pela última vez. E tive a certeza que ela também sabia que eu partia.
Só não sei ainda porque parti.
Waldir Araújo

Friday, February 17, 2006

MORRESTE-ME

Morreste-me num
minuto breve

Extinguiste no ápice de um acto
aparentemente (in)ofensivo

Morreste-me por deixares de aqui estar.
Onde mais ninguém estava.

Vagaste um singular lugar
com esta partida.

Morreste-me por já não fazer sentido
sentir-te aqui!

Mas a partida deixou algo novo...
Tal Fénix a minha alma renasceu

Morreste-me para eu nascer de novo!

Waldir Araújo

Thursday, February 16, 2006

HORA DI BAI

O eco forte e ensurdecedor
De alguém que grita com dor
Acaba de habitar-se no meu intímo
E, calmamente, destrói-me ao ínfimo

As imagens duma grande tragédia
Acabaram com toda a comédia
E instalaram-se na memória
Agora, substituiram a alegria

Na boca, o trago amargo do nada
No olfacto, o odor da vida malfadada
No querer, aquela vontade de partir
Na modéstia, a recusa de ser mártir

Aguardo o momento da despedida
O mais nobre de quem passa por esta vida
Apenas este momento conta, a tal hora…
Para que se parta com a devida honra!

Waldir Araújo

O MAIS POSSÍVEL

Amo o Impossível
O mais indecifrável
Mas também o mais afável
No teu ser
Mulher!

Amo a essência
Da tua indecência

E assim vivo...
Indefesamente e inofensivo
Com ânsia de tudo esquecer
Sem deixar de tudo querer

Em ti...
Amo o impossível
…O mais possível!!!

Waldir Araújo
Lx-2000

"ALTER EGO"

O teu sofrimento é a minha dor
É o reflexo da minha incapacidade
É minha culpa, meu pecado-mor
É dor que extingue a mocidade

És a criança que carrego comigo
No mais íntimo deste meu ser
E que não confesso a nenhum amigo
És o tudo do nada que não quero ter

Esse sofrimento que te atormenta
E que insiste matar-me lentamente
É o mesmo que a minha vida alimenta
E adormece cá dentro, calmamente!

O teu desamparo é o meu desnorte
A sombra desta minha perdição
Desta vida que já perdeu o norte
E que partilha assim esta maldição

Na verdade não existo sem ti
E por mais que negues o óbvio
Acabas por te encontrar em mim
És o meu vício e eu o teu ópio

Waldir Araújo

CONFESSIONÁRIO DE BOLSO

E, todos, um a um...
Juntos à volta da luz
E do ardor do fogo

E, todos, um a um
Exorcizámos a dor
Confessamos os pecados

E, todos, um a um...
Limpámos as lágrimas
Cristalinas da vida e do tempo
Testemunhas da sobrevivência

Por fim

E todos, um a um...
Sorrimos e guardamos
De novo
O confessionário nos bolsos
De cada um
O diário da vida
De cada um de nós

E, todos, um a um...
Partimos de novo
Rumo ao incerto!

Waldir Araújo

Monday, February 13, 2006

CARTA ABERTA A JOSÉ CARLOS SCHWARZT

Djiu di Galinha

Caro Zé Carlos,

Sei que, onde quer que estejas, estarás com o mesmo espírito da ideia com que fiquei do que foi a tua vida. Um espírito aberto e alegre, mas intranquilo. Uma vida curta e energicamente dedicada a dar a voz aos que não tinham força para falar mais alto.
Aposto que, estejas onde estiveres, estarás com a tua guitarra e a tua voz a intervir. A intervir a favor de uma causa qualquer . A favor de uma nobre causa qualquer. Não te conheci e, portanto, não fazes ideia de quem tem a ousadia de dirigir-te esta humilde carta. Mas eu explico.
Nasci a 27 de Maio de 1977, em Bissau. Sim, naquele dia tristemente fatídico em que partiste de uma forma inesperadamente brutal. Naquele dia em que um acidente de aviação ceifou uma jovem vida que ainda tinha muito para dar à nossa Guiné e que muitas saudades deixou. Talvez por isso - e por muitas outras razões - os meus pais deram-me o teu nome: José Carlos. Cresci e explicaram-me que apesar de ser um nome comum, tinha um valioso significado porque era uma homenagem a uma pessoa invulgar. Quis saber então mais sobre o que foi a tua vida, o sentido das mensagens das tuas músicas, a tua coragem e tudo mais. E tudo isso ninguém me disse. Tudo isso encontrei nos velhos discos de vinil que o meu pai guardava religiosamente.
Nas tuas músicas descobri que cantaste a epopeia de uma gloriosa luta de libertação nacional. Que louvaste os nossos heróis e as suas bravuras. Que condenaste como ninguém um colonialismo atroz e impiedoso. Mas também sei que quando chegou a aurora da independência, a tua voz não se calou. Não se calou perante qualquer atitude que consideravas contrária à razão de ser dessa luta. Pelo contrário, a tua voz subiu de tom para denunciar as injustiças.
O tempo foi passando e eu continuei a ouvir a tua música. Mas algo mudou. E o que mudou foi a forma como passei a entender as mensagens. É que elas não estão assim tão distante da realidade actual. Aliás, em certas situações, estão tão próximas do nosso tempo que custa a acreditar que foram escritas há tantos anos. As pessoas de que falas ainda estão entre nós. É verdade, Zé Carlos, acredita.
Noutro dia encontrei APILI. Sim, aquela mulher que esteve sempre junto do seu companheiro no mato durante a guerra. O mesmo homem que acabaria por abondona-lá mal chegara a independência, trocando-a por uma mulher mais jovem "KI SIBI ENTRA, KI SIBI SAI ".
APILI está hoje uma mulher velha e cansada, mas não guarda rancor. Continua corajosa e batalhadora. Imagina, é ela o pilar de uma numerosa família da qual se orgulha e pela qual é capaz de dar a vida "PA CALÉRON KA FRIA ". E o tal companheiro, o tal camarada que a abandonou, regressou. Hoje, caído em desgraça, é na casa de APILI que vai comendo para sobreviver. [Neste momento deves estar a pensar no sábio dito popular que musicaste: "VOLTA DI MUNDO I RABO DI PUMBA"].
Pois é, Zé Carlos.
Passaram muitos anos mas a terra ainda não encontrou descanso. Depois da tua partida, a guerra voltou. Voltou e semeou a divisão entre irmãos. Assombrou-nos e deixou feridas por cicatrizar. Deixou muitas "MINDJÉRIS DI PANO PRETO" e a tua pergunta "KÉ KI MININO NA TCHÓRA?" ainda faz sentido.
Mas a vida continua. E este povo não desiste, tú bem sabes! Afinal, como dirias, "I CASSA KI NO MISTI KUMPU".
Tenho 28 anos e hoje dou aulas numa pequena escola aqui em "DJIU DI GALINHA". Aqui, onde tentaram em vão calar a tua voz. Aqui onde aguardo pela concretização de uma promessa de bolsa de estudo. E enquanto isso, vou partilhando o pouco do saber com os mais novos. Como decerto farias.
Quando vou à Bissau, vejo os teus companheiros de outrora. Se pergunto por ti, "I SON SODADI", respondem. Os anos passam, mas eles cá resistem, alguns já de cabelos grisalhos e olhos embaciados. Estão longe de querer partir. Às vezes penso que é porque querem levar-te respostas para perguntas que decerto farás num futuro encontro.
O meu pai diz-me que não partem porque "CAMINHO LUNDJU INDA DI ANDA"...
Bem, fico por aqui amigo, a sala está cheia de gente que veio para dar-te um abraço, portanto, HORA DI CANTA TCHIGA!
Waldir Araújo

Friday, February 10, 2006

A HERANÇA


O sino da Igreja Matriz, junto ao Bairro de Ajuda, tocava cadencialmente, anunciando num tom melancólico as doze badaladas de um domingo triste. Os crentes rezavam fervorosamente, entregues ao seu culto, com uma energia que só a Fé é capaz de emprestar. Lá fora chovia intensamente. Num dos bancos do jardim, um homem de casaco e chapéu inglês permanecia imóvel. Silencioso. Era indiferente à chuva que lhe caía em cima. Parecia uma estátua. Os cânticos entoados no interior da Igreja espalhavam-se harmoniosamente pelo recinto. Eram melodias tristes. Do outro lado da rua, um cão latia sofregamente, profanando o silêncio.
Uma hora depois, os crentes abandonavam a Igreja, com a alma lavada pela Fé. Podia-se ver nos semblantes dos crentes um novo traço, os seus olhos brilhavam carregados de esperança. Pareciam preparados para enfrentar o mundo fora da Igreja.
Algumas pessoas protegiam-se com chapéus de chuva, enquanto outros improvisavam objectos que tinham na mão para resguardar a cabeça. O homem do casaco e chapéu inglês levantou-se e caminhou em direcção a uma das pessoas que deixavam o recinto da Igreja. Quando chegou junto de uma senhora de estatura alta e esbelta, ainda jovem e com os longos cabelos negros molhados, abraçou-a enquanto a mulher tentava afastar-se em vão. Abraçou-a forçosamente. Num abraço como nunca dera antes a alguém. Com as lágrimas misturadas com a água da chuva que lhe lavava a cara, o homem disse num tom melancolicamente sincero - Perdoa-me Sara, juro que as coisas nunca mais serão como dantes. Purdan, nha amor*. A bela figura para quem estas palavras foram proferidas, não se conseguia libertar do abraço do homem, limitando-se apenas a chorar. Soluçava a dor. A dor de quem está cansada de perdoar. Soluçava a sua vida. A vida de uma mulher que se entregou total e obstinadamente a um homem. Um homem que se entregou total e obstinadamente ao falso encanto do álcool.
Permaneceram silenciosamente abraçados por mais algum tempo. Choravam os dois. Viviam uns daqueles momentos em que o silêncio se sobrepunha, travando o avanço de qualquer palavra. Qualquer frase deixaria de fazer sentido porque era a vez de o silêncio falar. Lentamente, o homem foi libertando a mulher do vigoroso abraço, agarrou-lhe pela mão e caminharam. Em direcção a casa a que ele não voltava há meses. Em direcção à casa onde, duirante os primeiros unos da sua união viveram momentos únicos. Uma moradia construída de raiz, com um jardim frontal protegido por um muro alto, bem junto da Praça Central do Bairro de Ajuda, em Bissau.
Sara não conseguia deixar de pensar nas palavras do sacerdote que na missa daquela manhã falou na capacidade de perdoar. Nesse sentimento incrível de aceitar de volta e sem rancor nem condição quem nos ofende ou maltrata. O vigário disse que "o perdão liberta tanto quem o dá quanto quem o recebe". Mas Sara não fez mais nada na vida senão perdoar. E tinha prometido a si própria que já não perdoaria a mais ninguém. Tinha chegado o momento de se perdoar a si própria. Pensava nisso enquanto caminhava de mãos dadas com o homem que já não ama. Com o homem com quem viveu anos, na tentativa de um dia encontrar a felicidade. Anos de paixão e entrega, mas também de muita angústia e desencontros. Hoje, a paixão, o amor, deram lugar aos mais mesquinhos dos sentimentos: a compaixão, a pena. É "pena" o que a Sara hoje sente por este homem. E a Sara parecer ter pena de sentir pena de alguém que já não tem pena de si.
A vida do homem que caminha de mãos dadas com Sara fora sempre um moinho de enganos, frustração e fugas. Fugas para frente. Para lado nenhum. Adolfo nunca quis conseguir. E perdeu-se. Primeiro, perdeu-se de amores por esta fantástica mulher. Depois perdeu este amor para se perder de amor por álcool e outros tantos enganos. Daqueles enganos que inicialmente se adornam de sedução para depois se revelarem em destruição. E entrou no espiral da perda. No poço sem fundo.
Depois de mais uma longa ausência - mais frequente do que a sua presença em casa- resolveu voltar de novo. Mas desta vez algo parecia ter mudado. Não a entrega ao álcool, que prosseguia. Mas a sua voz, a forma como proferira a frase de perdão. O abraço. As lágrimas. Sim, porque Adolfo nunca chorara. O choro era a deixa da Mara. Ele gritava, partia tudo, insultava e saía. Partia sem rumo, conduzido pela embriaguez. Por trás deixava uma mulher lavada em lágrimas e carente. Carente de amor. Mas, sobretudo, carente de coragem. Carente de força para dizer basta!
Mas esse regresso traria alguma novidade? Mara nem pensa nessa questão porque lhe conhece a resposta.
Casaram-se há dez anos em Bissau, nesta mesma Igreja Matriz do Bairro de Ajuda. Foi uma festa e tanto. Vieram familiares e amigos de todo o lado para presenciar o momento. No dia da cerimónia, Adolfo não parava de chorar. Abraçava todo o mundo, banhando-se no mar das próprias lágrimas. Mas para se afogar, escolheu outro líquido. Sim, o vinho. Muito vinho para celebrar sabia lá ele o quê? "Para celebrar a vida malfadada", "Vida di Amontón, mofino"** diria o padre Virgílio Nante que não lhe quer ver nem pintado.
Naquele início de tarde, o regresso veio emaranhado no manto do mistério. Porquê agora? Porquê o regresso? Porquês que inquietam a fragilizada mente de Sara. Ao entraram na casa que abandonou faz tempo, Adolfo tremia. Estava tudo mudado de lugar. Havia mais harmonia na disposição dos móveis. Quase que não restaram sinais da sua antiga presença. A casa pareceu-lhe mais iluminada. O homem percebeu então que já não pertencia mais àquele lugar. Já não pertencia mais àquela mulher. Sara tentou tudo para disfarçar, para fazer com que o homem que fora um dia o amor da sua vida se sentisse de novo em casa. No Lar das suas discórdias. No ninho das suas inconfessáveis intimidadas. Ela não conseguia, porém, esconder uma certa perturbação. Foi para cozinha preparar qualquer coisa para matarem a fome. Adolfo estava na sala, impávido, aguardando o momento da decisão. De repente levantou-se em direcção a um armário enorme que ostentava o jogo de porcelanas e outros objectos de adorno. Abriu a primeira gaveta do armário e encontrou várias garrafas de gin, algumas vazis, outras com o líquido já ao meio do vasilhame. Estranhou a descoberta. Adolfo nunca bebeu gin. Precipitou-se a concluir a existência de um outro homem que ocupara o seu lugar. No espaço e coração da mulher que sempre amara. Silenciosamente abriu a porta da sala e saiu. Sim, já não fazia mais parte daquela vida. Perdeu a Sara. Perdera-se a si próprio. Partiu, com a certeza de que fora traído, trocado por outro. Traído por si próprio, para começar.
Quando Sara voltou da cozinha para anunciar que tinha aquecido o Caldo de Peixe do dia anterior, Adolfo já estava longe daquela sala. Daquela casa. Sara viu o armário aberto e as garrafas de gin em cima da mesa. Apercebeu-se do que acontecera. Não conseguiu evitar as lágrimas e apertando fortemente uma das garrafas de bebida contra si gritou: "Não Adolfo, não existe outro homem na minha vida, apenas a tua herança". Falava como se Adolfo estivesse à sua frente, a escuta-lá. Mas não. Adolfo partira faz tempo. Fez o que sempre fizera, partir. Do outro lado da rua um cão latia sofregamente profanando o silêncio. O silêncio que se abateu após o desabafo de Sara, que abrira outra garrafa de gin.
Waldir Araújo

A SEGUNDA (É DE) VEZ

Os corpos misturavam-se num roçar húmido e brusco. Escorriam neles um espesso liquído misturado de suor e sangue. Os gritos das crianças sobrepunham-se aos soltos lamentos das mães e dos velhos desamparados. O ecoar estrondoso dos tiros assombrava ainda mais a cidade violentada, opaca e prenhe de dor. -É A GUERRA E NÃO HÁ NADA A FAZER, GUERRA É GUERRA E A VITÓRIA É CERTA!, berrava uma estridente voz no transístor sintonizado no FM do regime. No meio deste desespero, fugí. Sem rumo nem aprumo. Corria ao avesso. Corria com a criança que trago comigo estampada na alma a cantar em lágrimas. A cantar a inocente cantiga das nossas bricandeiras do quintal. KUMANDJA, KUMANDJA, SA KUMANDJA, KUMANDJA KUMANDJA, SA KUMANDJA, KA BU ILAN KANHUTU, SA KUMANDJA, KA BU FEQUIN FARINHA, SA KUMANDJA...
Sim, bem no âmago do caos de uma guerra confusa, ocorria-me cantar para afugentar os maus espíritos que querem levar a criança que trago estampada na alma e que este meu corpo de adulto esconde.
Acompanhava-me também uma forte preocupação. Onde estaria o meu amigo Saliu? Saber do seu paradeiro foi na altura o maior desejo (Se é que, no meio de uma guerra, se pode ter outro desejo que não seja o de ser salvo). Mas eu tinha a imperativa vontade de encontrar Saliu. Angustiava-me o espírito pensar que Saliu pudesse ter sido engolido por aquela tragédia despida de sentido. Pensei na sua diminuída capacidade física. Na ceguez física da sua ampla visão. Como fugirá um cego deste caos onde os ditos "normais" sucumbem diminuidos?!! Por instantes tive a sensação de o ter visto a correr pela Avenida Unidade Africana acima, já estava junto da Mãe de Água e do Mercado de Bandim. Ia à frente da multidão. Indicando aos incautos o caminho a fugir. "Esquerda, Direita, Cuidado o tiro vem da zona do Palácio. Não, esse vem dos lados de Polón di Brá". Um cego a comandar uma multidão a fugir de uma guerra insensata. "Cego é quem não quer ver", usava dizer Saliu. Sempre com aquele sorriso do fim do mundo com que contava as façanhas da sua participação na "guerra de verdade", a de Libertação Nacional. A "guerra de verdade" que o deixou na eterna escuridão. Cego e esquecido.
Lembro-me do nosso reencontro, foi no Mercado de Bandim.
"Coitadi na Pidi Simóla"*... Estremeci quando ouvi a trémula foz que me suou tão familiar. Aproximei-me dele, desviando de gente que vendia e comprava tudo e mais alguma coisa. Saltando de poça em poça de água, livrando-me dos imensos lixos espalhados pela feira, até chegar próximo do homem que soltava em voz estridente o pedido de auxilio: "Coitadi na pidi simóla" . Em silêncio, sem prenunciar palavra, atirei uma moeda para a lata do alumínio. Sem se mover, Saliu soltou uma gargalhada e disparou: Estás de volta à terra, amigo? Como sempre, fazes tudo ao contrário. Escolheste má altura. Isto aqui cheira-me a sangue, muito sangue. Pouco tempo depois, caímos naquele caos. A última vez que estivemos juntos Saliu pareceu-me muito deprimido. Falava muito da guerra que o subtraíu a visão. Da vida que teve de viver a partir do acontecido. Combinamos um encontro para o dia seguinte. O meu amigo Saliu prometeu que me levaria à sua tabanca, em Djalecunda, próximo de Mansoa. Garantiu-me que ainda existem elefantes e outras espécies em extinção em Djalecunda . O encontro ficou assim irremediavelmente adiado.
Ao chegar ao cais, onde todos tentavam embarcar no pequeno e sobrelotado navio pesqueiro, em fuga, rumo ao incerto, procurei mais uma vez por um sinal do meu amigo. Gritei o seu nome e o silêncio devolveu-me empurrões e palavrões dos que queriam à toda a força embarcar no navio fugitivo. Alguém fez-me sinal para embarcar. Nô bai, barcu na ranca, bumbas na cai na tudu lado, Nô bai rapaz. Disse-me um velho simpático, puxando-me pelo braço direito. Era hora de partida. A espera já não era mais razão. Resisti. único e sozinho. E lentamente fui-me entregando. Caminhava lentamente e já estava no chão do navio quando me virei de repente e vi o meu amigo Saliu em terra. Estava de branco e armadilhado até à alma. Atrás dele, aproximava-se um pelotão armado e em disparos. O meu amigo cego parecia ver tudo. Tirou uma das armas que trazia e apontou-a à nuca. Olhou para mim e gritou : "ninguém me apanha mais. Da primeira vez levaram-me a vista, desta vez, até à vista!". O barulho do disparo misturou-se com o som do navio a arrancar. Estava ainda em choque e a pensar na razão desta guerra quando li, escrito numa das portas do navio, "Djito tem qui tem"***. Será?
Waldir Araújo

*O Coitado está a pedir Esmola
**Vamos, o barco está a partir, as bombas caem por todo o lado, vamos rapaz.
***Tem de haver solução

Thursday, February 09, 2006

PRAÇA DO IMPÉRIO

Fica bem no centro da capital, defronte ao palácio da Presidência da República. É uma herança colonial esta praça que habita a memória colectiva dos bissau-guineenses. Bem no centro da Praça, está implantada a imponente estátua de uma mulher segurando uma coroa de oliveira, o tal "esforço da raça", marco do "Império Colonial Português". Por essarazão, não poucas vezes as autoridades guineenses tentaram arrancar a estátua da praça. Em vão. Parecendo fazer jus ao nome, o "esforço da raça" ficou, para lembrar Portugal ou a "Guiné Portuguesa". O fervor independentista não se conformou com tamanha herança e volta e meia, lá surgia uma tentativa de arrancar a estátua. Resignados, as autoridades decidiram mudar o nome à praça. Sim, porque, como se não bastasse, o nome é ainda mais colonialista do que a imponente figura de mármore. "Praça do Império". Nem mais. Num ímpeto libertador, as autoridades mudaram o nome para "Praça dos Heróis Nacionais". Ora toma!
Mas quando me recordo desta praça, não me vêm à memória as perturbações que o nome do jardim e da estátua que nela repousa causaram - ou causam - às autoridades guineenses. Até porque não vejo mal nenhum em preservar uma referência histórica, exorcisados que parecem estar os fantasmas das agruras que no passado opuseram os dois países. O que me recorda a Praça do Império é a minha infância. Os meus amigos e as tardes de Domingo. Todos os Domingos à tarde, acompanhados pelos irmãos mais graúdos ou primos, ou tias, lá estávamos. Com a nossa roupinha mais bonita, arranjadinhos, os cabelos bem penteados e a alegria de reencontrar os amigos da escola e do nosso bairro. Era um acontecimento único. Aquela praça, geometricamente traçada em círculo, enchia-se de magia. De gente jovem e bonita. Crianças que brincavam livremente pelos verdejantes jardins embelezados com roseiras e outras flores tropicais de cores quentes. Conseguir trepar as bancadas da estátua da "Maria da Fonte" era um desafio que tinha que ser concretizado todos os domingos, era uma espécie de prova de bravura perante os olhares atentos das namoradas. Namoradas! Pois é, foi na Praça do Império que conheci a minha primeira namorada. Ainda me lembro como se fosse hoje. Ela tinha os olhos mais lindos que jamais vira. Olhos cor de mar em calmaria. Naquele domingo, ela trazia um vestido azul bébé. Nos longos caracóis tinha um laço também azul, mais carregado. Tudo a combinar com aqueles olhos cor de mar em calmaria. Não eramos estranhos. Na verdade os nossos pais eram amigos. Frequentávamos a casa um do outro. Mas foi na Praça do Império, apoiado pelas encorajadoras palavras do meu irmão mais velho (que andava com os olhos na prima da minha princesa) que disse, pela primeira vez à Mónica o quanto batia o meu coração de cada vez que nos encontravamos em mais uma volta à praça circular. Ela sorriu. (Nunca mais voltei a ver um sorriso tão puro). Ao cair da noite, na hora de partirmos, com as tias a atormentarem-nos, ela aproximou-se e beijou os meus lábios. Num beijo tão inocente, tão puro e tão doce que ainda o trago ancorado na memória. Enquanto isso, o meu irmão trocava juras de amor inocente com a Layla, a prima da Mónica. Mais ao longe, o Bruno, o Rui, o Osvaldo e o Patrick brincavam ao "apanha lenço", para tormento das mães e tias que não se cansavam de repetir que estava na hora do regresso à casa. Esta é a recordação que trago na alma quando me lembro da "Praça do Império". Tudo isto foi há muitos anos. Hoje, esta Praça é um jardim triste, com os canteiros secos de flores, os bancos a cairem de podre e um ar abandonado. Foi há pouco tempo, a última vez que me vi parado, bem junto à estátua da "Maria da Fonte", na praça da minha infância. Não muito longe, no que já fora um dos canteiros mais floridos da Praça, um bode comia restos de ervas daninhas. Numa das bancadas da estátua dormia um homem trajado de luto. À minha volta aterrou um silêncio pesaroso. E de repente pareceu-me ver o jardim lindo e cheio de gente. As luzes de várias cores e as crianças e adultos numa tarde de domingo. Mais ao longe, o Bruno, o Rui, o Osvaldo e o Patrick brincavam ao "apanha lenço", para tormento das mães e tias que não se cansavam de repetir que estava na hora do regresso à casa. A Mónica vinha de mãos dadas com a prima Layla. Ao meu lado, o meu irmão sussurou-me: "vai, é agora. Diz-lhe o quanto gostas dela". Disse.
Waldir Araújo