Monday, February 13, 2006

CARTA ABERTA A JOSÉ CARLOS SCHWARZT

Djiu di Galinha

Caro Zé Carlos,

Sei que, onde quer que estejas, estarás com o mesmo espírito da ideia com que fiquei do que foi a tua vida. Um espírito aberto e alegre, mas intranquilo. Uma vida curta e energicamente dedicada a dar a voz aos que não tinham força para falar mais alto.
Aposto que, estejas onde estiveres, estarás com a tua guitarra e a tua voz a intervir. A intervir a favor de uma causa qualquer . A favor de uma nobre causa qualquer. Não te conheci e, portanto, não fazes ideia de quem tem a ousadia de dirigir-te esta humilde carta. Mas eu explico.
Nasci a 27 de Maio de 1977, em Bissau. Sim, naquele dia tristemente fatídico em que partiste de uma forma inesperadamente brutal. Naquele dia em que um acidente de aviação ceifou uma jovem vida que ainda tinha muito para dar à nossa Guiné e que muitas saudades deixou. Talvez por isso - e por muitas outras razões - os meus pais deram-me o teu nome: José Carlos. Cresci e explicaram-me que apesar de ser um nome comum, tinha um valioso significado porque era uma homenagem a uma pessoa invulgar. Quis saber então mais sobre o que foi a tua vida, o sentido das mensagens das tuas músicas, a tua coragem e tudo mais. E tudo isso ninguém me disse. Tudo isso encontrei nos velhos discos de vinil que o meu pai guardava religiosamente.
Nas tuas músicas descobri que cantaste a epopeia de uma gloriosa luta de libertação nacional. Que louvaste os nossos heróis e as suas bravuras. Que condenaste como ninguém um colonialismo atroz e impiedoso. Mas também sei que quando chegou a aurora da independência, a tua voz não se calou. Não se calou perante qualquer atitude que consideravas contrária à razão de ser dessa luta. Pelo contrário, a tua voz subiu de tom para denunciar as injustiças.
O tempo foi passando e eu continuei a ouvir a tua música. Mas algo mudou. E o que mudou foi a forma como passei a entender as mensagens. É que elas não estão assim tão distante da realidade actual. Aliás, em certas situações, estão tão próximas do nosso tempo que custa a acreditar que foram escritas há tantos anos. As pessoas de que falas ainda estão entre nós. É verdade, Zé Carlos, acredita.
Noutro dia encontrei APILI. Sim, aquela mulher que esteve sempre junto do seu companheiro no mato durante a guerra. O mesmo homem que acabaria por abondona-lá mal chegara a independência, trocando-a por uma mulher mais jovem "KI SIBI ENTRA, KI SIBI SAI ".
APILI está hoje uma mulher velha e cansada, mas não guarda rancor. Continua corajosa e batalhadora. Imagina, é ela o pilar de uma numerosa família da qual se orgulha e pela qual é capaz de dar a vida "PA CALÉRON KA FRIA ". E o tal companheiro, o tal camarada que a abandonou, regressou. Hoje, caído em desgraça, é na casa de APILI que vai comendo para sobreviver. [Neste momento deves estar a pensar no sábio dito popular que musicaste: "VOLTA DI MUNDO I RABO DI PUMBA"].
Pois é, Zé Carlos.
Passaram muitos anos mas a terra ainda não encontrou descanso. Depois da tua partida, a guerra voltou. Voltou e semeou a divisão entre irmãos. Assombrou-nos e deixou feridas por cicatrizar. Deixou muitas "MINDJÉRIS DI PANO PRETO" e a tua pergunta "KÉ KI MININO NA TCHÓRA?" ainda faz sentido.
Mas a vida continua. E este povo não desiste, tú bem sabes! Afinal, como dirias, "I CASSA KI NO MISTI KUMPU".
Tenho 28 anos e hoje dou aulas numa pequena escola aqui em "DJIU DI GALINHA". Aqui, onde tentaram em vão calar a tua voz. Aqui onde aguardo pela concretização de uma promessa de bolsa de estudo. E enquanto isso, vou partilhando o pouco do saber com os mais novos. Como decerto farias.
Quando vou à Bissau, vejo os teus companheiros de outrora. Se pergunto por ti, "I SON SODADI", respondem. Os anos passam, mas eles cá resistem, alguns já de cabelos grisalhos e olhos embaciados. Estão longe de querer partir. Às vezes penso que é porque querem levar-te respostas para perguntas que decerto farás num futuro encontro.
O meu pai diz-me que não partem porque "CAMINHO LUNDJU INDA DI ANDA"...
Bem, fico por aqui amigo, a sala está cheia de gente que veio para dar-te um abraço, portanto, HORA DI CANTA TCHIGA!
Waldir Araújo

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