Tuesday, February 21, 2006

"NADA VER"

A melodia saía sofregamente da cansada guitarra. Os longos dedos que dedilham as cordas bambas do instrumento são morenos e exibem grandiosamente as rugas de uma vida ritmicamente tumultuosa. Vivida de escala em escala.
O som que escorregava do ventre da guitarra era familiar e executada com mestria. "N'cria Ser Poeta" . O nosso artista não tinha público e isso parecia pouco importar. O palco era uma pequena sala de um bar, com pouca decoração e uma placa a anunciar fluorescentemente o nome do estabelecimento, "Nada Ver". Poucos minutos passavam das 19 horas quando entrei no estabelecimento. A menina-de olhos-cor-do-mar atendeu-me com aquele sorriso feito meia-lua. Mal fiz o pedido, tropeçou-me com as perguntas habituais, à laia de fazer conversa. Sem sucesso. Apercebeu-se do meu súbito interesse pelo homem que no canto da sala dedilhava as cordas de uma cansada guitarra.
"N'cria ser Poeta". É estranha a minha relação com esta suprema composição de Paulino Vieira. Despe-se-me a alma de cada vez que a escuto. E naquela tarde, a sensação foi a mesma. Viajei de mãos dadas com fragmentos de memórias que são no fundo não mais do que peças de puzzle feito lembraças. Pedaços de momentos, vozes, sorrisos, lágrimas, cumplicidades. Vividas aqui e além. Um pouco por todos os lugares que percorri. E que volta e meia, percorro de novo sem lá estar. Viajava com o olhar fixado na expressiva cara do homem de cabelos grisalhos que tocava alheio a tudo. Apercebeu-se do meu interesse. Como se de propósito, pareceia não querer pôr fim a interpretação. Estavamos apenas os três. O homem-de-cabelos-grisalhos-e-dedos-enrugados, a menina-de-olhos-cor-do-mar e eu. E a melodia que nos consomia. Os olhos da menina ganharam mais cor e pareciam agora um mar em calmaria. O mar das tristes mornas e coladeras. O mar dos que partem e dos que ficam à espera. Eternamente à espera. Mas ficam. Como as notas de uma pauta esquecidas num tripé. Ficam por uma razão qualquer. Uma forte razão qualquer. A menina-de-olhos-cor-do-mar também viajava ao som da guitarra do homem-de-cabelos-grisalhos-e-dedos-enrugados. Fixei-a. Por momentos quis ler os seus pensamentos. Conhecer os pedaços de memórias feito peças de puzzle que volta e meia, accionados por um sentido - um cheiro, uma melodia, um olhar - assaltam-nos a lembrança. A pose, com a mão direita a amparar o queixo e um olhar marabsorto, perdidamente longe, sugeria lembranças inconfessáveis.
Momentos depois um silêncio interrompeu a nossa viagem. O homem-de-cabelos-grisalhos-e-dedos-enrugados intorrompeu a interpretação e pegou no copo transparente cheio de grogue. Deu um gole súbito e sem piedade. Olhou para mim e tirou o "can-can" do bolso e cheirou longamente. - Quer conversar, confidenciou-me a "menina-de-olhos-cor-do-mar ". -Ele já viu o seu interesse e quer conversar. Aproximei-me e depois de uma desajeitada apresentação, ofereci um copo ao homem-de-cabelos-grisalhos-e-dedos-enrugados . Ele nem precisou nomear a bebida, a menina-de-olhos-cor-do-mar tirou automaticamnentedaestante uma garrafadegrogue CidadeVelha e serviu-o no mesmo copo transparente. O artista apontou-me a cadeira num convite à conversa. Elogiei a interpretação de "N'cria Ser poetra". -Fui eu que ensinei Paulino Vieira a tocar viola, respondeu. Altivo, como se esta frase justificasse a mestria com que brinca com a guitarra cansada. Falamos muito. Ao longo da conversa, ia dedilhando uns acordes de temas conhecidos. Com uma mestria impressionante. Fiquei a saber que vinha de uma família de músicos da Ilha de Brava, Dja Brava. Tinha um pequeno "tchón" para lavrar e ajudava o irmão na pesca. O pequeno negócio do irmão afundou e a terra mais não quis dar. O homem-de-cabelos-grisalhos-e-dedos-enrugados decidiu partir então para Santiago. De encontro à uma vaga promessa de trabalho que ainda hoje aguarda. Lembrou-se então que dos parcos haveres que trouxe, veio a companheira de sempre, a sua velha, cansada, bonita e inseparável guitarra. -Herdei-a do meu pai. É a única coisa de valor que tenho. Hoje, vai vivendo do que chama de "biscates", tocando aqui e ali, em troca de um prato de comida. Ou groque para "aquecer a dor e enganar o estômogo" . Entretido nos fragmentos de uma vida cujos pormenores me eram confidenciados na primeira pessoa, não me apercebi que a sala do bar tinha mais gente. Mais clientes que vinham tomar algo e "não se importavam" de ficar horas a fio a apreciar os dotes do homem-de-cabelos-grisalhos-e-dedos-enrugados que tocava como ninguém uma guitarra velha e cansada, mas donde brotam acordes que enfeitiçam. Dias antes de deixar Santiago, voltei a cruzar-me com o homem-de-cabelos-grisalhos-e-dedos-enrugados. Nunca soube o nome dele. Estava sentado à porta de uma pequena mercearia, na Achada de Santo António, com a velha amiga de madeira, cansada e bonita que brota sons de encantar. Dedilhava dedicamente uma outra melodia. "Mar i Morança di Sôdade", do incontornável B.Leza. Ofereci-lhe um copo. -Não. Desta vez pago eu, quem fica é que paga! Ainda hoje estou por descobrir como que ele sabia que eu partia horas depois.
E com um gesto nobre contou as poucas moedas que tinha no bolso da calça gasta e pediu duas cálices de Aguardente Velha.
"-Nós ficamos, não pergunte porquê, mas ficamos. É destino do homem, Deus assim quer", rematou para matar o silêncio que nos ladeava. Do outro lado da rua a "menina-de-olhos-cor-do-mar" dançava suavemente ao som do batuque tocado por um grupo de mulheres vestidas de branco. Deixei-me perder pela elegância e sedução com que dançava a rapariga cujo nome também não sei. E os seus olhos - hoje um mar de ondas a morrer nos rochedos- fixou-me pela última vez. E tive a certeza que ela também sabia que eu partia.
Só não sei ainda porque parti.
Waldir Araújo

No comments: