Friday, February 10, 2006

A HERANÇA


O sino da Igreja Matriz, junto ao Bairro de Ajuda, tocava cadencialmente, anunciando num tom melancólico as doze badaladas de um domingo triste. Os crentes rezavam fervorosamente, entregues ao seu culto, com uma energia que só a Fé é capaz de emprestar. Lá fora chovia intensamente. Num dos bancos do jardim, um homem de casaco e chapéu inglês permanecia imóvel. Silencioso. Era indiferente à chuva que lhe caía em cima. Parecia uma estátua. Os cânticos entoados no interior da Igreja espalhavam-se harmoniosamente pelo recinto. Eram melodias tristes. Do outro lado da rua, um cão latia sofregamente, profanando o silêncio.
Uma hora depois, os crentes abandonavam a Igreja, com a alma lavada pela Fé. Podia-se ver nos semblantes dos crentes um novo traço, os seus olhos brilhavam carregados de esperança. Pareciam preparados para enfrentar o mundo fora da Igreja.
Algumas pessoas protegiam-se com chapéus de chuva, enquanto outros improvisavam objectos que tinham na mão para resguardar a cabeça. O homem do casaco e chapéu inglês levantou-se e caminhou em direcção a uma das pessoas que deixavam o recinto da Igreja. Quando chegou junto de uma senhora de estatura alta e esbelta, ainda jovem e com os longos cabelos negros molhados, abraçou-a enquanto a mulher tentava afastar-se em vão. Abraçou-a forçosamente. Num abraço como nunca dera antes a alguém. Com as lágrimas misturadas com a água da chuva que lhe lavava a cara, o homem disse num tom melancolicamente sincero - Perdoa-me Sara, juro que as coisas nunca mais serão como dantes. Purdan, nha amor*. A bela figura para quem estas palavras foram proferidas, não se conseguia libertar do abraço do homem, limitando-se apenas a chorar. Soluçava a dor. A dor de quem está cansada de perdoar. Soluçava a sua vida. A vida de uma mulher que se entregou total e obstinadamente a um homem. Um homem que se entregou total e obstinadamente ao falso encanto do álcool.
Permaneceram silenciosamente abraçados por mais algum tempo. Choravam os dois. Viviam uns daqueles momentos em que o silêncio se sobrepunha, travando o avanço de qualquer palavra. Qualquer frase deixaria de fazer sentido porque era a vez de o silêncio falar. Lentamente, o homem foi libertando a mulher do vigoroso abraço, agarrou-lhe pela mão e caminharam. Em direcção a casa a que ele não voltava há meses. Em direcção à casa onde, duirante os primeiros unos da sua união viveram momentos únicos. Uma moradia construída de raiz, com um jardim frontal protegido por um muro alto, bem junto da Praça Central do Bairro de Ajuda, em Bissau.
Sara não conseguia deixar de pensar nas palavras do sacerdote que na missa daquela manhã falou na capacidade de perdoar. Nesse sentimento incrível de aceitar de volta e sem rancor nem condição quem nos ofende ou maltrata. O vigário disse que "o perdão liberta tanto quem o dá quanto quem o recebe". Mas Sara não fez mais nada na vida senão perdoar. E tinha prometido a si própria que já não perdoaria a mais ninguém. Tinha chegado o momento de se perdoar a si própria. Pensava nisso enquanto caminhava de mãos dadas com o homem que já não ama. Com o homem com quem viveu anos, na tentativa de um dia encontrar a felicidade. Anos de paixão e entrega, mas também de muita angústia e desencontros. Hoje, a paixão, o amor, deram lugar aos mais mesquinhos dos sentimentos: a compaixão, a pena. É "pena" o que a Sara hoje sente por este homem. E a Sara parecer ter pena de sentir pena de alguém que já não tem pena de si.
A vida do homem que caminha de mãos dadas com Sara fora sempre um moinho de enganos, frustração e fugas. Fugas para frente. Para lado nenhum. Adolfo nunca quis conseguir. E perdeu-se. Primeiro, perdeu-se de amores por esta fantástica mulher. Depois perdeu este amor para se perder de amor por álcool e outros tantos enganos. Daqueles enganos que inicialmente se adornam de sedução para depois se revelarem em destruição. E entrou no espiral da perda. No poço sem fundo.
Depois de mais uma longa ausência - mais frequente do que a sua presença em casa- resolveu voltar de novo. Mas desta vez algo parecia ter mudado. Não a entrega ao álcool, que prosseguia. Mas a sua voz, a forma como proferira a frase de perdão. O abraço. As lágrimas. Sim, porque Adolfo nunca chorara. O choro era a deixa da Mara. Ele gritava, partia tudo, insultava e saía. Partia sem rumo, conduzido pela embriaguez. Por trás deixava uma mulher lavada em lágrimas e carente. Carente de amor. Mas, sobretudo, carente de coragem. Carente de força para dizer basta!
Mas esse regresso traria alguma novidade? Mara nem pensa nessa questão porque lhe conhece a resposta.
Casaram-se há dez anos em Bissau, nesta mesma Igreja Matriz do Bairro de Ajuda. Foi uma festa e tanto. Vieram familiares e amigos de todo o lado para presenciar o momento. No dia da cerimónia, Adolfo não parava de chorar. Abraçava todo o mundo, banhando-se no mar das próprias lágrimas. Mas para se afogar, escolheu outro líquido. Sim, o vinho. Muito vinho para celebrar sabia lá ele o quê? "Para celebrar a vida malfadada", "Vida di Amontón, mofino"** diria o padre Virgílio Nante que não lhe quer ver nem pintado.
Naquele início de tarde, o regresso veio emaranhado no manto do mistério. Porquê agora? Porquê o regresso? Porquês que inquietam a fragilizada mente de Sara. Ao entraram na casa que abandonou faz tempo, Adolfo tremia. Estava tudo mudado de lugar. Havia mais harmonia na disposição dos móveis. Quase que não restaram sinais da sua antiga presença. A casa pareceu-lhe mais iluminada. O homem percebeu então que já não pertencia mais àquele lugar. Já não pertencia mais àquela mulher. Sara tentou tudo para disfarçar, para fazer com que o homem que fora um dia o amor da sua vida se sentisse de novo em casa. No Lar das suas discórdias. No ninho das suas inconfessáveis intimidadas. Ela não conseguia, porém, esconder uma certa perturbação. Foi para cozinha preparar qualquer coisa para matarem a fome. Adolfo estava na sala, impávido, aguardando o momento da decisão. De repente levantou-se em direcção a um armário enorme que ostentava o jogo de porcelanas e outros objectos de adorno. Abriu a primeira gaveta do armário e encontrou várias garrafas de gin, algumas vazis, outras com o líquido já ao meio do vasilhame. Estranhou a descoberta. Adolfo nunca bebeu gin. Precipitou-se a concluir a existência de um outro homem que ocupara o seu lugar. No espaço e coração da mulher que sempre amara. Silenciosamente abriu a porta da sala e saiu. Sim, já não fazia mais parte daquela vida. Perdeu a Sara. Perdera-se a si próprio. Partiu, com a certeza de que fora traído, trocado por outro. Traído por si próprio, para começar.
Quando Sara voltou da cozinha para anunciar que tinha aquecido o Caldo de Peixe do dia anterior, Adolfo já estava longe daquela sala. Daquela casa. Sara viu o armário aberto e as garrafas de gin em cima da mesa. Apercebeu-se do que acontecera. Não conseguiu evitar as lágrimas e apertando fortemente uma das garrafas de bebida contra si gritou: "Não Adolfo, não existe outro homem na minha vida, apenas a tua herança". Falava como se Adolfo estivesse à sua frente, a escuta-lá. Mas não. Adolfo partira faz tempo. Fez o que sempre fizera, partir. Do outro lado da rua um cão latia sofregamente profanando o silêncio. O silêncio que se abateu após o desabafo de Sara, que abrira outra garrafa de gin.
Waldir Araújo

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