Wednesday, November 01, 2006

My Baby Just Cares For Me

Desta vez não tenho alternativa, sinto no ar o prenúncio do fim. Deixa-me apressar. Sim, quero um cigarro, gaita! Onde está o maço do tabaco? Ela vai chegar, sinto os passos no corredor. Ah, esse perfume que me persegue há anos. Desta vez não sei o que lhe direi. Desta vez já não haverá outra. Ufa, finalmente o cigarro. Nada melhor que uma baforada de veneno quando o perigo espreita. Não, não quero mais nada. Vou continuar aqui neste quarto frio de um hotel não menos húmido e despedido de conforto. Aqui nesta armadilha de quatro paredes. Ela sabia que eu morderia o isco. Preparou tudo minuciosamente, como sempre fizera com a nossa vida. Pormenorizadamente. Tinha jurado flagrar-me. Tinha jurado acabar com a longa farsa “de finjo que não sei e ele finge que acredita”. Fingir. Nos primeiros anos da nossa vida conjunta fingimos. Nos anos que se seguiram, também. Nos gestos de carinho, no olhar supostamente cúmplice, nas raras gargalhadas, nas ruidosas discussões, nos ardentes momentos sexuais… tudo encenado! Porquê? Porque sim, porque convinha e porque o contrário também não fazia sentido. Ela exerceu sempre sobre mim esta sensação tenebrosa de poder. Apoderou-se de mim e preso me fiz da sua tirania.
Agimos sempre no manto do “faz de conta” imbuídos numa certeza tão oca quanto essencial para manter a aparência do matrimónio feliz.
Feliz! Ah,ah,ah, que palavra banal. O que importa ser feliz e deixar de sentir essa vertiginosa e diletante vontade de querer estar onde não estamos, de querer o que não temos, de almejar o aparentemente inacessível?
Pois é, casamos e eu nem dei por isso. Ela jurou amar-me numa igreja repleta de gente estranha e um padre estrábico. Eu retribuí a promessa que nunca cumpri. Com o passar do tempo, matamos a nossa mentira. Convertemos a farsa em valsa inacabada. E assim fomos respirando a atmosfera da útil falsidade. Não interessa na verdade o que nos fez dar esse passo falso. Mas demos o nó, o nó górdio.
E tudo parecia normal até a velhice começar a tentar meter-se no meio. E tudo parecia infinitamente rotineiro, com ela a tomar conta de tudo e de mim, como sempre fizera. Tudo na moldura de “lá em casa tudo bem” e eis que acontece o inesperado. Ela jura sentir-me diferente. Ela jura sentir outro perfume no ar. Ela jura saber que ando a trai-la. E, subitamente, desceu do pedestal da indiferença e pintou mais os lábios. Voltou a usar as provocantes saias curtas e abandonou as calcinhas. Soltou os cabelos e pôs um soutien que lhe arrebita as mamas. Tudo num ritual sensual. No gira-discos Nina Simone gabava-se, “My Baby Just Cares For Me”.
O cigarro está quase no fim e continuo a ouvir passos no corredor. O perfume aproxima-se. Alguém abre a porta do quarto enfadonho. À minha frente esta uma mulher linda de pernas perfeitas e grossos lábios pintados. Conheço o perfume. Aproximou-se mais. Pegou na minha mão direita e colocou debaixo da saia. Estava molhadíssima. Num ritual silencioso despe-me e possui-me brutalmente. À noite, já em casa, ela serviu o jantar e abriu a garrafa do vinho do porto que eu tanto adoro. Em silêncio serviu os copos e no momento do “tchin-tchin”, rematou: Ela é melhor do que eu, não é?
Waldir Araújo